sábado, 14 de março de 2009

Moral, Justiça e Direito na Teoria de Hans Kelsen

Hans Kelsen critica as teorias que procuram a distinção do direito com relação à moral a partir dos critérios interioridade (moral) e exterioridade (direito). Sua crítica repousa sobretudo no fato de que o direito por vezes regula condutas internas e por vezes regula condutas externas, assim como ocorre com a moral. Este critério seria, portanto, insuficiente para dar conta do problema.

Se o direito for entendido e definido exclusivamente a partir das idéias de normatividade e validade, então seu campo nada tem a ver com a Ética. Esta é a proposta de cisão metodológica, que acabou por provocar fissura profunda no entendimento e no raciocínio dos juristas do séc. XX, de Hans Kelsen. Então, pode-se sintetizar sua proposta: as normas jurídicas são estudadas pela Ciência do Direito; as normas morais são objeto de estudo da Ética como ciência. O raciocínio jurídico, então, não deverá versar sobre o que é certo ou errado, sobre o que é virtuoso ou vicioso, sobre o que é bom ou mau, mas sim sobre o lícito e o ilícito, sobre o legal (constitucional) ou ilegal (inconstitucional), sobre o válido e o inválido.

A diferenciação entre os campos da moralidade e da juridicidade, para Kelsen, decorre de uma preocupação excessiva com a autonomia da ciência jurídica. Argumenta Kelsen que, se se está diante de um determinado Direito Positivo, deve-se dizer que este pode ser um direito moral ou imoral. É certo que se prefere o Direito moral ao imoral,[1] porém, há de se reconhecer que ambos são vinculativos da conduta.

Em poucas palavras, um direito positivo sempre pode contrariar algum mandamento de justiça, e nem por isso deixa de ser válido.[2] Então, o direito positivo é o direito posto (positum – posto e positivo) pela autoridade do legislador, dotado de validade, por obedecer a condições formais para tanto, pertencente a um determinado sistema jurídico. O direito não precisa respeitar um mínimo moral para ser definido e aceito como tal, pois a natureza do direito, para ser garantida em sua construção, não requer nada além do valor jurídico.[3] Então, direito e moral se separam.[4] Assim, é válida a ordem jurídica ainda que contrarie os alicerces morais.[5] Validade e justiça de uma norma jurídica são juízos de valor diversos, portanto (uma norma pode ser válida e justa; válida e injusta; inválida e justa; inválida e injusta).

O que de fato ocorre é que Kelsen quer expurgar do interior da teoria jurídica a preocupação com o que é justo e o que é injusto. Mesmo porque, o valor justiça é relativo, e não há concordância entre os teóricos e entre os povos e civilizações de qual o definitivo conceito de justiça. Discutir sobre a justiça, para Kelsen, é tarefa da Ética, ciência que se ocupa de estudar não normas jurídicas, mas sim normas morais, e que, portanto, se incumbe da missão de detectar o certo e o errado, o justo e o injusto. E muitas são as formas com as quais se concebem o justo e o injusto, o que abeira este estudo do terreno das investigações inconclusivas.[6] Enfim, o que é justiça?

Na mesma medida em que para a Ciência do direito é desinteressante deter-se em investigações metodologicamente destinadas a outras ciências ( Antropologia, Sociologia…), a Ética é considerada ciência autônoma sobre a qual não pode intervir a ciência do direito. A diferenciação metodológica seria a justificativa para que não se tomasse o objeto de estudo de outra ciência, formando-se, com isto, barreiras artificiais e intransponíveis entre as mesmas.

A discussão sobre a justiça, de acordo com Kelsen, e conforme os argumentos acima elencados, não se situaria dentro das ambições da Teoria do direito. Discutir sobre a justiça, para Kelsen, é tarefa da Ética, ciência que se incumbe de estudar não normas jurídicas, mas sim normas morais, e, portanto, incumbida da missão de detectar o certo e o errado, o justo e o injusto.

Isto não significa dizer que Kelsen não esteja preocupado em discutir o conceito de justiça, e mesmo buscar uma concepção própria acerca deste valor.[7] Isto quer dizer, pelo contrário, que toda discussão opinativa sobre valores possui um campo delimitado de estudo, o qual se costuma chamar de Ética. Aqui sim é lícito debater a justiça ou a injustiça de um governo, de um regime, de determinadas leis… Por isso, Kelsen não se recusa a estudar o justo e o injusto; ambos possuem lugar em sua teoria, mas um lugar que não o solo da Teoria Pura do Direito; para esta somente o direito positivo, e seus modos hierárquico-estruturais, deve ser objeto de preocupação.


[1]Kelsen, Teoria Pura do Direito, 1976, p. 100.

[2]“Um Direito Positivo pode ser justo ou injusto; a possibilidade de ser justo ou injusto é uma conseqüência essencial do fato de ser positivo” (Kelsen, O que é justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da ciência, 1998, p. 364).

[3]Kelsen, Teoria pura do direito, 1976, p. 103.

[4]“A exigência de uma separação entre Direito e Moral, Direito e Justiça, significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é independente desta Moral Absoluta, única válida, da Moral por excelência, de a Moral” (Kelsen, Teoria pura do direito, 1976, p. 104).

[5]O Direito da Teoria Pura não pode ser por essência um fenômeno moral (Kelsen, Teoria pura do direito, 1976, p. 107).

[6]“De fato, muitas e muitas normas de justiça, muito diversas e em parte contraditórias entre si, são pressupostas como válidas. Um tratamento científico do problema da justiça deve partir destas normas de justiça e por conseguinte das representações ou conceitos que os homens, no presente e no passado, efetivamente se fazem e fizeram daquilo que eles chamam justo, que eles designam como justiça. A sua tarefa é analisar objetivamente as diversas normas que os homens consideram válidas quando valoram algo como justo” (Kelsen, O problema da justiça, 1998, p.16).

[7]Daí dedicar-se, fora de sua obra Teoria pura do direito, a extensas investigações sobre a justiça, tendo publicado inúmeros artigos, e se detido com muito afinco no estudo de algumas teorias sobre a justiça, como, por exemplo, a teoria platônica da justiça, que se tornou obra coesa, publicada postumamente (O que é justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da ciência; O problema da justiça; A ilusão da justiça…).

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